Fear this queer: Cassandra Rios

Cassandra Rios

19 de agosto é o dia da visibilidade lésbica no Brasil. Isso se deve a um momento marcante da história do movimento LGBT nacional, que foi uma ação comandada por um grupo lésbico em represália a atitudes lesbofobicas no Ferro’s Bar quando, em julho de 83, quando este tentou impedir que fossem distribuídas edições do jornal ChanacomChana, uma publicação lésbica de teor político que era impressa em formato de fanzine, dentro do bar. A publicação era da Galf (Grupo de Ação Lésbico-Feminista) e as ativistas deste apontaram para a hipocrisia dos donos do bar já que ele era em grande parte frequentado por mulheres lésbicas e, em 19 de agosto de 1983, estas organizaram uma invasão ao bar como forma de protesto junto com militantes gays, intelectuais e estudantes. O tumulto gerado chamou a atenção da mídia e o grupo ganhou o direito de vender o fanzine ChanacomChana dentro do bar. Muitos se referem ao acontecido como um "pequeno Stonewall brasileiro" em referencia a famosa revolta que aconteceu nos Estados Unidos e que foi um acontecimento central para o movimento homossexual de lá.  Uma data como esta para mim parece ideal para falar brevemente sobre a grande escritora lésbica brasileira: Cassandra Rios.

Acho que a grande pergunta a ser feita é: você sabe quem é Cassandra Rios? Quantos livros dela você já viu a venda nas livrarias? Quantas reedições de obras dela existem atualmente? Falando por mim, eu descobri ela de forma completamente acidental vendo um vídeo no youtube sobre um de seus livros mais famosos: Eu sou uma lésbica (que agora se encontra fora de catálogo mas que está disponível em ebook na amazon). Dando uma lida superficial sobre ela já foi o suficiente para eu ficar surpreso com a trajetória de vida dela e com o seu esquecimento.

Cassandra Rios é o pseudônimo de Odette Perez Rios, uma paulista nascida em 1932. Filha caçula de uma família de classe média alta e cristã, Cassandra desde nova gostava de escrever poesias e era uma leitora voraz. Em sua tese “Onde Estão as Respostas Para as Minhas Perguntas”?: Cassandra Rios – A Construção do Nome e a Vida Escrita Enquanto Tragédia de Folhetim (1955-2001)” Kyara Maria de Almeida comenta que ela publicou o seu primeiro texto aos treze anos e que entre os treze e catorze anos “foi vencedora de tantos concursos de contos dos jornais, que foi convidada para escrever na Revista Capricho, da Editora Abril”.Com o dinheiro da mãe ela publicou o seu primeiro livro, A Volúpia do Pecado, aos 16 anos e já falava nele sobre erotismo e lesbianidade, temas que viriam a ser frequentes em sua obra. Já nessa obra ela assinou com o pseudônimo que a deixaria famosa, a escolha do nome Cassandra é por causa do interesse que ela tinha pela mitologia grega.

Cassandra Rios e seus livros


Cassandra chegou a se casar aos 18 anos com o seu melhor amigo mas este era um assunto que sempre evitou comentar. Ao longo da sua vida escreveu mais de cinquenta livros (até hoje não se tem certeza da quantidade certa), quase todos com temática lésbica ou então com personagens gays ou travestis. Ela foi durante muito tempo uma das poucas escritoras a conseguir viver de literatura já que seus livros eram extremamente populares e se tornou a primeira escritora brasileira a vender mais de 1 milhão de cópias, entre os seus fãs estavam escritores como Érico Veríssimo, Ivan Lessa, Jorge Amado e o escritor galês  Richard Llewellyn (escritor de Como Era Verde o Meu Vale). Além do título de “escritora mais vendida do país” ela também carregava o de “autora mais censurada” já que 36 de seus 50 livros foram proibidos pela ditadura militar. Entre as honrarias que recebeu estão a Comenda Cruz do Mérito Social do Instituto Brasileiro de Estudos Sociais em 1964, um diploma da Secretaria de Educação de São Paulo em 1966, e o Troféu Leila Diniz como homenagem do Jornal O Bandeirante, teve quatro livros adaptados para o cinema (os filmes são Ariella, Muro Alto, Tessa, a gata e A Mulher Serpente e a Flor) e chegou a concorrer como deputada estadual de São Paulo pelo PDT em 1986.

Apesar disso não era bem quista por seus pares intelectuais. Isto ficou claro quando, no famoso Manifesto do Mil (abaixo-assinado de 1977 contra a censura da ditadura militar) o seu nome foi e os seus livros foram excluídos da lista final. Sua literatura era rejeitada pelo cânone que não considerava a sua literatura “séria” e isto talvez explique porque a autora mais vendida do país caiu no esquecimento e terminou a sua vida morando num apartamento pequeno. Cassandra Rios morreu em 2002, ela passou os seus últimos anos de vida sozinha por vontade própria já que tinha feito um voto de castidade como promessa para que a sua mãe se recuperasse de um problema de saúde. Ela própria dizia que na verdade era apenas uma dona de casa e que ela própria fica vermelha com as coisas que escrevia às vezes.

Na ocasião da sua morte Marcelo Rubens Paiva publicou um texto sobre ela onde criticava o esquecimento daquela que já foi a escritora mais vendida do país e onde cita uma frase da própria Cassandra Rios: "Se o homem escreve, ele é sábio, experiente. Se a mulher escreve, é ninfomaníaca, tarada" (o texto pode ser lido aqui). Cassandra anda sendo redescoberta nos últimos anos (principalmente pela academia) e isso me deixa extremamente feliz, mas ainda sim seus livros carecem de edições recentes e sinto que ela ainda é tratada somente como uma espécie de curiosidade.

Apesar da sua obra normalmente lembrada pelo seu teor erótico e pornográfico Cassandra chegou a passear pelo campo da ficção especulativa e pelos livros de mistério. Irei destacar dois livros em especial: As Mulheres do Cabelo de Metal de 1971 e A Serpente e a Flor de 1965.

As Mulheres do Cabelo de Metal é uma obra de ficção-científica (e aparentemente com toques eróticos) que fala de uma raça de mulheres alienígenas que invadem a Terra e dominam os homens (aparentemente este é um dos seus poucos livros focados em personagens heterossexuais). Já A Serpente e a Flor é uma história de suspense onde uma jovem foge do seu casamento e vai para a casa de praia da família, lá ela começa a ter um caso com uma vizinha e estranhos assassinatos começam a acontecer.


A Serpente e a Flor foi adaptado para o cinema em 1983 com o nome de A Mulher Serpente e a Flor ou então O Orgasmo da Serpente (é possível achar com os dois títulos). O filme foi dirigido por J. Marrecco, roteiro de Benedito Ruy Barbosa e estrelando Ciça Manzano, é um filme interessante para quem se interessa pelo terror nacional (ainda mais um terror com protagonismo lésbico), mas já aviso para tomar cuidado: anos depois o filme foi reeditado e foram incluídas cenas de sexo explicito aleatórias que não existiam antes (e que não envolviam nenhum dos atores originais) e que foram inseridas só para aproveitar o boom do cinema pornográfico na época.

cena de A Mulher Serpente e a Flor (1983)


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