Filme: "Born in flames"


"52 films by women" é uma campanha iniciada pelo instituto Women in Film que convidou cinéfilos a verem 52 filmes dirigidos por mulheres em um ano (o equivalente a um filme por semana) com o intuito de estimular o consumo de obras feitas por mulheres. Estou fazendo pelo terceiro ano seguido e digo que é uma das melhores coisas que um fã de cinema pode fazer principalmente por nos convidar a pesquisar por filmes que geralmente acabam voando abaixo do radar. Foi assim que fiquei sabendo da ficção-cientifica "Born in flames" dirigido pela diretora de filmes independentes Lizzie Borden em 1983.

O filme é uma distopia onde os Estados Unidos passaram por uma "revolução socialista" que acabou não mudando realmente as estruturas de poder e vemos um grupo revolucionário de mulheres negras e lésbicas que possui uma rádio clandestina lutando para que a revolução seja completa (ou seja, acabe com desigualdades de gênero, raciais e realmente represente toda a sua população). Vemos no começo pequenos atos como grupos de mulheres vigilantes socorrendo vitimas de assédio sexual, transmissões de rádio e lentamente as coisas vão crescendo, grupos diferentes vão se juntando e a repressão policial começa a se intensificar.



Borden traz muita complexidade para um tema muito interessante: o após a revolução. Nesse futuro onde os Estados Unidos passou por uma revolução supostamente socialista vemos que, no final das contas, as relações de opressão contra mulheres e negros continuam iguais. Ao longo do filme essas personagens fazem questão de reafirmar que o que buscam é metade da representação de gênero e racial no poder, que a violência sexual seja algo efetivamente comentado e combatido (nesse futuro existem supostas "casas de correção" para quem comete atos de violência sexual mas, segundo as personagens, esse sistema não funciona e também não garante nenhum tipo de assistência para mulher vitima da agressão) e que elas possam ter direito a trabalhar além do trabalho doméstico. Por isso são alvos de discursos patologizantes, vigiadas, criminalizadas e marcadas como contra-revolucionarias.

Toda a complexidade das revoluções e o que vem depois sendo abordados aqui sem nunca ir para um discurso anti-comunista. É um filme sem protagonistas, o protagonista é o próprio movimento delas, o coletivo, e o formato que a diretora escolheu para retratar contribui muito para isso e ainda contorna as visíveis limitações orçamentarias. Ela escolhe mostrar varias das transmissões, entrevistas e jornais que passam na TV aberta e recortes do cotidiano e das ações dessas mulheres (que na maioria das vezes não tem nada muito grandioso ou hollywoodiano). Isso já basta para dar toda a dimensão desse universo onde o "Born in flames" se passa, torna possível que a gente entenda o que leva grupos tão diversos a irem se unindo e toda a estética que para alguns pode soar amadora acaba torna tudo mais verídico e quase documental. No momento em que estamos de intensos protestos por razões raciais o filme tem diálogos que parecem falar diretamente com o espectador atual. Um em especifico que acho que vale a pena se destacar: "Nós temos um direito a violência, todos as pessoas oprimidas tem o direito a violência, e vou te dizer uma coisa, é como o direito a mijar. Você tem que ter o lugar certo, você tem que ter a hora certa, você tem que ter a situação apropriada e eu estou absolutamente convencida de que este é o caso."





Um momento que eu acho particularmente genial dentro do filme é quando está ocorrendo toda uma intensa discussão sobre o desejo das mulheres trabalharem e no momento seguinte temos uma montagem de cenas a principio desconexas (mãos embalando carne num mercado, lavando talheres, organizando equipamentos de dentista, colocando uma camisinha num pênis, etc) ao som da musica tema do filme (que repete varias vezes "born in flames"). Momentos assim se repetem em outros momentos do longa, não demora para o espectador perceber que se tratam de mãos femininas realizando os mais tipos diferentes de trabalhos e que, no momento onde a história se passa, estão sendo desconsideradas.



"Born in flames" é um filme de gênero interessantíssimo e, na minha humilde opinião, genial. Infelizmente a filmografia da diretora é curtíssima tendo só mais cinco filmes. O filme passou no festival de Berlim, ganhou prêmios e chegou a ser considerado um dos "cinquenta filmes independentes mais importantes" pela revista Filmmaker e ainda sim não é um filme fácil de se achar, desconhecido pelo grande publico e ignorado em coletâneas como "1001 filmes para se ver antes de morrer" e afins. Eu por exemplo só fiquei sabendo dele quando fui pesquisar sobre filmes dirigidos por mulheres (algo que eu honestamente não faria caso não tivesse escolhido participar do desafio). Acho que isso abre um auto questionamento muito importante sobre o cânone.

Um desafio como o "52 films by women" ou o "52 films by brazucas" nos desafia a nos abrirmos para outros tipos de estéticas, outros tipos de cinema, outros tipos de história e a fugir do cânone. Porque filmes como "Born in flames", "A new leaf" (filme dirigido pela Eliane May, considerada a única mulher a participar da New Hollywood e que comeu o pão que o diabo amassou na mão dos estúdios), "Pasqualino sete belezas" (da Lina Wertmuller, filme que fez ela ser a primeira mulher a ser indicada ao oscar de melhor diretora), "Nitrate Kisses" (da Barbara Hammer, a primeira diretora lésbica a fazer filmes sobre lésbicas), "Welcome II the terrordome" (da Ngozi Onwurah, uma ficção-cientifica afrofuturista) e "Os homens que eu tive" (filme brasileiro da Tereza Trautman que fala de liberdade sexual e poliamor em plena ditadura militar) acabam beirando o esquecimento e filmes do Scorsese, Lynch e Sam Packinpah acabam ficando para posterioridade e sendo referenciados?



Sabemos que não é uma questão de puramente qualidade, na verdade sabemos exatamente por que esses filmes são largados no esquecimento, mas a gente realmente se esforça para desconstruir isso e ir atrás de outras coisas? Acho que essa foi a principal mensagem do Bong Joon-Ho quando ele disse que "ao superar a barreira da legenda você irá encontrar filmes maravilhosos", não que norte-americanos são burros por não lerem a legenda. Isso eu tô falando em relação a diretoras mulheres mas também é 100% valido para diretores negros, LGBT, asiáticos e para filmes queer e filmes de gênero como um todo que são quase sempre considerados algo menor e descartável. Creio que fãs de cinema de gênero já estão acostumados a passar por essas barreiras, a procurar filmes normalmente classificados como "trash" e que não correspondem ao que é considerado de bom gosto. Como fã de cinema de horror e de ficção-cientifica já fazia isso ainda que de forma inconsciente e isso se intensificou quando aceitei a minha homossexualidade e passei procurar obras de ficção que de alguma forma me contemplassem, hoje consigo racionalizar melhor sobre isso e acabou que "Born in flames" foi o gatilho que precisei para colocar esses pensamentos aqui. Que nós continuemos a ter uma relação critica com o cânone e que continuemos a procurar e abraçar as diversas obras, artistas e narrativas que ficam ocultas na sombra dele. Que a gente descubra obras que nos abram os olhos para novas possibilidades e novas utopias como é o caso de "Born in flames".


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