Filme: "Faca no coração"



Vendo várias listas por aí de melhores filmes de terror do ano, melhores da década etc eu tenho me espantado um pouco com o fato de “Faca no coração” (“Un couteau dans le coeur” no original) ter sido completamente esquecido. Na verdade não fico tão espantado assim porque tá aí um filmaço que passou praticamente em branco em 2019, tanto para o grande público quanto para os fãs de horror. As razões para ter passado tão despercebido de fato são muitas: é um filme de terror queer que basicamente gira em torno de sexo gay (algo que certamente deve afastar o público hétero tradicional) e é também um grande e belíssima homenagem ao giallo, o subgênero de terror italiano que espectadores de ocasionais do gênero dificilmente conhecem atualmente. Como este filme de longe é uma das melhores descobertas que fiz recentemente nada mais justo do que usar o meu pequeno espaço na internet para falar o porquê dele ser tão maravilhoso.



O filme se passa em Paris no final dos anos 70, mais precisamente em 1979. Acompanhamos Anne, uma mulher lésbica que trabalha como produtora e diretora de filmes pornôs gays que não consegue lidar com o fim do seu relacionamento. Além de toda a dor que sente com o término ela também tem que lidar com um novo acontecimento: um dos atores da sua produtora foi brutalmente assassinado. Anne, pragmática do jeito que é, decide que o seu próximo filme será inspirado no caso e se chamará “Homocidal”, porém os assassinatos continuam acontecendo. Vendo que a polícia não vai fazer nada, ela decide investigar o caso por conta própria.

Filmes de terror queer não são exatamente uma novidade. Seja no subtexto, seja abordando de forma explícita ou sendo reapropriado dessa forma a viadagem e a sapatonice sempre esteve por aí no gênero, seja nos filmes clássicos do James Whale para Universal seja em filmes dos anos 80 como “A hora do espanto”. Mas algo que salta aos olhos logo de cara em “Faca no coração” é como o diretor, Yann Gonzalez, faz o seu filme girar em torno do sexo homossexual sem em momento algum ter medo de chocar a plateia heterossexual. O filme abraça toda a sexualidade dos personagens e a liberdade do momento e do local em que a história se passa sem fazer nenhum julgamento moral.




Além da trama girar em torno de sexo e afetividades queer, toda a estética e formato de “Faca no coração” são extremamente queer. Quem já viu um giallo percebe que é um gênero com uma pegada visual muito forte que não raras as vezes é homenageada só por esse lado, mas a própria forma como a história é contada é bem única.

Os giallo não são histórias de mistério que respeitam as normas do nosso mundo, este é um universo onde os personagens descobrem pistas em sonhos e em delírios, onde videntes descobrem assassinos em seus transes, onde pinturas elegantes e animais exóticos guardam a revelação dos mistérios e onde coincidências são frequentes. No final das contas os diretores estão mais preocupados em cenas bonitas, reviravoltas e nas belas atrizes do que necessariamente em uma história coesa. Isto nem de longe é um defeito, pelo contrário, o que faz o gênero tão único.



“Faca no coração” abraça todo exagero e a artificialidade do giallo não só no seu visual, a história é cheia de sentimentos intensos aflorados, sonhos misteriosos, eventos inexplicáveis e tremendas coincidências, além, é claro, da própria arma que o assassino usa (uma mistura de dildo com canivete!) A trilha sonora também é belíssima e se assemelha horrores com as músicas de sintetizador comuns na época, mas com muita identidade e sem parecer copiada de nenhum filme.

O filme é o mais puro suco de camp (estética ligada ao artificialismo e ao exagero que é fortemente ligada à comunidade LGBT) e chega a ser engraçado como tudo isso soa estranho para uma plateia mais desavisada. O diretor segue de forma tão natural os pré-requisitos do gênero que se me dissessem que era algum filme perdido do Argento ou do Fulci eu acreditaria, não fosse, claro, o olhar dado pelo diretor para seus personagens queer.





Também é notável a forma como o Gonzalez mescla sentimentos no filme. Além de todo o interesse e a tensão por trás da investigação para descobrir quem o assassino, o filme também é permeado por uma melancolia intensa. Primeiramente da sua protagonista (interpretada belamente pela Vanessa Paradis), uma mulher cheia de arestas e que não consegue lidar com a intensidade do que sente pela sua ex-noiva. Mas pouco a pouco essa melancolia se transforma, e no final (sem dar spoilers) se transforma no sentimento de que aquilo não é nada comparado com a ameaça que está por vir e que irá destruir todo este mundo que os personagens conhecem.

Mas mais do que terminar o seu filme de forma melancólica, Gonzalez trás para o seu filme, do seu jeito, claro, uma imagem belíssima do potencial que o cinema e a arte tem permitir que pessoas queer possam reinventar e reimaginar a sua própria trajetória. Ainda que isto seja tratado de forma trágica acho uma forma belíssima de se terminar um filme belíssimo.



PS: fãs de giallo (e de filmes de terror no geral) vão captar várias referências a filmes como “Torso” (a máscara do assassino é parecidíssima), “Miss Muerte”, “Pássaro das plumas de cristal”, “A casa com janelas sorridentes” etc


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