Conto: "Se tudo der errado amanhã"



Música da Simone, música da Mariah, especial do Roberto Carlos, missa do galo, rabanada, amigo oculto, papais-noeis de shopping, família reunida e bonecos de neve de isopor enfeitando praças sendo que a temperatura tá batendo os 30 graus. Querendo ou não, para o bem ou para o mal, a época de natal chegou! 

A época em que a divisão entre os que veem o copo meio cheio e os que veem o copo meio vazio mais fica clara, eu particularmente já passei da minha fase adolescente edgy que acha muito legal ser cínico no natal e achar tudo uma grande hipocrisia capitalista e passei a apreciar o sentimento da época e a sensação de que pelo menos uma vez por ano podemos acreditar que está tudo bem (algo que, vamos combinar, estamos precisando nesse grande fiasco que foi 2019). Óbvio que falo da minha experiência e que existem n razões para esse ser um feriado… bem, não muito aprazível. Especialmente se olharmos dentro da perspectiva dos sujeitos LGBT.


Para combinar com essa época do ano e com esse tema decidi tirar as teias de aranha do blog e comentar sobre um conto gay de fantasia passado na época natalina, estou falando de “Se tudo der errado amanhã” do Johnatan Marques. Johnatan (ou Johncito como ele usa nas redes sociais) é formado em marketing, trabalha como designer gráfico, ilustrador, quadrinista e de quebra ainda escreveu dois contos até o momento (este e “Inquérito Nº 2017505: Papa-figo” ambos disponíveis na Amazon). Primeiro eu conheci o trabalho do Johnatan enquanto ilustrador e já me apaixonei de cara, ele tem um traço que eu acho lindo e a forma como ele representa o afeto entre homens de forma tão corriqueira é algo que me toca muito.

Ele também flerta bastante com a ficção especulativa nos seus trabalhos, em “Se tudo…” nós temos um recorte que nos mostra um mundo mágico existente no Brasil. A história começa acompanhando Omar e Rubens, dois amigos que na época de natal estão procurando a irmã de Rubens buscando reconciliação. Por que? Porque Rubens é um lobisomem (assim como Omar), ele foi contaminado por uma gangue e isso fez com que ele fosse expulso de casa, perdesse todos os amigos e passasse por modificações corporais que o fizeram viver na margem dessa sociedade mágica. Esse reencontro porém será atrapalhado por um incêndio.

“Nunca chorei pitangas, mas a sociedade julga quem é marginal- e, bingo, nós dois éramos marginais, ele por nascimento e eu por conta de uma gangue de licantropos que me atacou no dia em que o Brasil se tornou pentacampeão.”

Se tudo der errado amanhã” é uma delícia de ler, o autor te joga nesse mundo de um jeito que te deixa desnorteado a princípio mas que pouco a pouco vai se tornando cada vez mais curioso e interessante. Aos poucos vemos detalhes da história e da política desse mundo que o deixam cada vez mais fascinante como o momento em que é citado que muito conhecimento se perdeu pois a família real portuguesa queimou livros sobre feitiços sob a justificativa que esse conhecimento só teria trago a ruína para Portugal, ou então comentarios sobre as políticas em relação a minorias desse mundo (como… bem, os lobisomens).

Rubens e o seu desejo quase desesperado por se reconciliar com a família são muito bem construídos e o leitor consegue simpatizar com ele logo de cara. Também é possível estabelecer paralelos entre a licantropia e a aids pois é dito que mudanças físicas acontecem (como o protagonista tendo que usar óculos escuros para esconder os olhos amarelos) e o próprio Rubens uma hora diz que ela é “uma doença sem cura”. Mas para mim aí mora talvez o maior mérito do conto, a doença não é tratada em tom fúnebre ou de fim de linha, assim como o preconceito da família não é retratado como o fim de qualquer possibilidade de felicidade para Rubens.

Omar e Rubens (Binho)

O conto tem uma nota extremamente otimista de que devemos pensar em outras possibilidades de existência, outras possibilidades de família que não a nuclear e com laços de sangue. Pessoas queer em algum momento descobrem que são monstros aos olhos da sociedade, acredito que não devemos buscar tentativas de nos encaixar, mas sim ver nisso uma possibilidade de descobrir outras formas de se viver e de se relacionar. Nós temos que abraçar a diversidade de outras formas de se existir e a possibilidade que temos de, na falta de uma família que apoie, possamos criar os nossos próprios laços, a nossa própria família que não a modelo padrão, mas ainda sim ligada pelo amor e pelo sentimento.

“Eu posso não ter uma família, mas eu tenho uma alcateia agora.” 

Que nós possamos criar as nossas próprias alcateias, nossos laços, sejam quais forem, nos fazem mais fortes. Que neste natal você e sua alcateia sejam felizes e que nós possamos somar ainda mais as nossas forças para o que vem por aí.

Fica a recomendação deste conto super gostosinho para esta véspera e os meus desejos de um feliz Natal para todos.

Links para o trabalho do Johnatan :twitter, instagram link pra comprar "Se tudo der errado amanhã" na amazon


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