Fear this queer: Horace Walpole


Castelos com passados trágicos e passagens secretas, noites chuvosas, ruídos estranhos de correntes, possíveis fantasmas e vampiros coexistindo com mocinhas presas em torres. Estes são elementos típicos dos romances góticos, um gênero literário que você certamente já ouviu falar e que já foi alvo de inúmeras parodias, homenagens e reencarnações. Originado na passagem do século XVIII para o XIX junto com o movimento romântico trouxe junto consigo temas como o irracional, a loucura, o sobrenatural e o folclórico, razão pela qual alguns teóricos costumam ler o gênero como uma resposta ao racionalismo e ao cientificismo do movimento Iluminista. Esse ponto gera bastante polêmica entre os estudiosos, o Michael Lowy em "Revolta e Melancolia" por exemplo vê no romantismo não um anti-iluminismo, mas sim um anti-capitalismo e um anti-mecanicismo (razão pela qual existem tantas interpretações divergentes e que leem o romantismo como revolucionário, anti-revolucionário, conservador e até mesmo como sendo proto-fascista!).

Também não faltam leituras que veem elementos queer dentro do gótico. Uma interpretação que cai como uma luva em um gênero que lida com porões e personagens que guardam em si segredos que as demais pessoas considerariam grotesca e por monstros trágicos não aceitos pela sociedade. Nesse pequeno texto são dadas varias interpretações breves sobre a queerness contida no gótico. Desde autores que transformam os seus desejos proibidos em narrativas grotescas; monstros que são uma ameaça para a sociedade hétero-normativa cristã e até mesmo o papel do "inexplicável" ou "indizível" nas histórias que eram preenchidos com a imaginação e os temores homofóbicos da sociedade inglesa do século XIX.  Não atoa vários artistas lgbt produziram obras dentro desse gênero, como é o caso de James Whale, F.W. Murnau e Andy Milligan no cinema e na literatura nomes como Oscar Wilde, Daphnne Du Murier, William Beckford e o próprio Horace Walpole que deu inicio a toda essa tradição ao fazer um gigantesco elmo esmagar o pobre e adoentado herdeiro do castelo de Otranto e filho do violento Manfred.

Capa da edição brasileira atual de "O castelo de Otranto"


Publicado em 1764, "O castelo de Otranto" inaugura o romance gótico (inclusive já trazendo como subtitulo "a gothic story") e já apresenta as profecias, mocinhas trancafiadas, castelos sombrios, passagens secretas e um certo exagero que se tornariam comum ao gênero. Já o seu autor nasceu em 1717 na sombria Londres. Filho do primeiro ministro da época, Walpole estudou matemática, musica e anatomia e em 1741 ingressou na vida política. Walpole nunca se casou e era considerado efeminado, o que, claro, foi um prato cheio para os seus adversários políticos.

Tom Ambrose em seu livro "Heróis e exílios- ícones gays através dos tempos" localiza Walpole num momento histórico de grande discussão sobre quais penas aplicar ao crime da sodomia na Inglaterra. Ainda pairava a chocante execução Mervyn Touchet, conde de Castleheaven, que foi condenado a morte junto com dois empregados por, entre outras coisas, terem sido acusados de masturbação mutua. O grande choque que esse caso causou foi não apenas pela violência da pena, mas também por ter sido uma das primeiras vezes que um aristocrata foi formalmente acusado e condenado por um crime de natureza sexual (normalmente as acusações eram em torno de crimes relacionados a traição). As discussões sobre a severidade do código de leis escrito por Edward Coke em 1607, que considerava a sodomia um crime até mais infame que o roubo e o estupro, acabaram culminando em uma lei em 1781 só previa execução de acusados de sodomia se fosse comprovada a penetração anal e a emissão interna de sêmen (sim, bem fiscal de cu mesmo).

Foi em meio a essa Inglaterra que temia estar meio a declínio moral (com uma produção cada vez maior de textos de cunho moralista) foi onde Walpole cresceu, viveu e, segundo a Ambrose, teve um caso com o poeta Thomas Grey. Ambos estudaram juntos e criaram desde essa época um forte laço de amizade que acabou virando uma relação amorosa. O ápice dessa relação foi quando ambos, como um casal, fizeram o famigerado Gran Tour pela França e a Itália (um tour por cidades desses países que eram conhecidas popularmente por serem o tipo de lugar habitado por sodomitas, depravados e hedonistas; o tipo de passeio que não deveria ser feito por pessoas de boa índole). As despesas foram em sua maioria pagas pelo Walpole que era quem tinha uma condição melhor entre dois.

Retrato de Thomas Grey, poeta romantico, confidente e amante de Walpole


Infelizmente o relacionamento de ambos acabou azedando e terminou ainda durante o tour. Ambrose atribui o termino tanto ao choque entre a personalidade de ambos (ele descreve Walpole como "volátil e sociável" e Grey como "solitário e estudioso) quanto pelo ciumes que Grey sentia de um antigo amante de Walpole (Henry Fiennes-Clinton, o nono conde de Lincoln). Grey viria a se refugiar nos estudos e no isolamento, se apaixonou outras vezes e substituiu o lugar que Walpole tinha como seu confidente por outros homens e dedicou a eles vários de seus poemas como "Ode a primavera", "Soneto a morte do Sr. West", "Ode a adversidade" entre outros. Já Walpole, segundo o autor: "resolveu tentações semelhantes (em relação aos seus desejos emocionais) levando uma vida profundamente ativa, produzindo milhares de cartas para amigos e conhecidos". Suas memorias publicadas em forma de cartas são até hoje um rico material para os historiadores e, segundo Ambrose,  o escritor falaria de sua paixão por outro homem apenas uma vez, para um primo, e teve como resposta a repulsa imediata deste que falou que isto era algo sabidamente desrespeitoso e contrario a natureza.

Horace Walpole viria a falecer em 2 de março de 1797 (cerca de 25 anos depois de Thomas Grey) sem herdeiros, sem cônjuge e legando para o mundo o gênero gótico e a semente que futuramente seria o gênero do terror. Tom Ambrose diz ao final do capitulo sobre o autor que ele sentia falta dos dias que passou em Florença com Grey e seus outros amigos que formavam um grupo autonomeado "Quadrupla Aliança". Walpole lamentou profundamente a sua vida, mesmo com todas as conquistas que ele alcançou e chegou a dizer a um amigo que "tinha se arrependido milhões de vezes por ter voltado para a Inglaterra, onde nunca fui feliz, nem espero ser".

Apesar dos pesares, Horace Walpole ainda conseguiu viver uma vida pacifica sem grandes incidentes relacionados a sua sexualidade, coisa que não pode ser dita sobre o seu contemporâneo, e também escritor gótico, William Beckford. Mas isso já é assunto para outro dia.



PS: a grande maioria das informações desse texto foram tiradas do livro "Heróis e exílios- ícones gays através dos tempos", se você conhece outras fontes sobre o assunto sinta-se a vontade para compartilhar comigo!

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