"26º Festival de Cinema de Vitória" e o que eu encontrei por lá


Moro no Espirito Santo numa cidade vizinha a capital (Vitória) e sempre tive uma certa birra com isso. Sempre morri de inveja de conhecidos meus que moram em São Paulo e no Rio de Janeiro que postavam imagens indo a festivais de cinema, mostras especiais ou em pré-estreias de filme que só iam estrear aqui meses depois, para mim parece algo próximo mas ao mesmo tempo tão distante quanto ir ao festival de Cannes. Bem vira-lata mesmo, não me orgulho disso.

Pela primeira vez nos quase vinte anos que moro aqui fui no festival de cinema que acontece aqui anualmente. Não consegui ir em todos os dias pois... bem... eu ainda tenho uma vida e estamos no meio do semestre. Acabei indo só três dias para algumas das mostras de curtas e vi dois longas, isso acabou sendo um dos pontos altos não só do meu mês, mas do meu ano. Não só a primeira vez que eu vou no festival de Vitória, mas também que eu vou num festival de cinema na minha vida. Mais do que poder ver de perto artistas que eu admiro horrores (como os maravilhosos Silvero Pereira e Marcelia Cartaxo além do Rodrigo Aragão que é fácil um dos diretores que eu acho mais inspiradores do Brasil), todo o ar das salas era algo contagiante. Vi curtas do Brasil inteiro, vi pedaços desse país, diretores negros fazendo protesto em relação ao assassinato da pequena Agatha no RJ, artistas falando sobre a resistência do cinema em meio aos cortes, houveram risadas e aplausos fortes ao longo dos filmes. Mesmo que nem todos os filmes tenham sido do meu agrado eu acho que nunca tinha tido uma sensação tão gostosa e intensa de ver a arte como algo vivo, pelo menos não dessa forma.

Entre os vários curtas que eu vi três deles se destacaram a ponto de eu sentir necessidade de escrever sobre eles aqui. Os três são focados em histórias de personagens LGBT, dois são de ficção e um é uma história real mais interessante e curiosa que a ficção.



Deusa Olímpica (Emília Schramm, Jéssika Barbosa, Pedro Luis Viana, Rafael Brasileiro)

Vi esse curta documentário na mostra de curtas LGBT e foi o melhor de todos de longe. Os diretores fazem aqui algo que me lembrou uma fala da Svetlana Aleksiévitch em que ela diz que o que ela faz é tentar eternizar a voz de pessoas que, de outra forma, lentamente escorregariam rumo ao esquecimento. No caso a figura retratada aqui é uma pintora cearense chamada Márcia Maia Mendonça que teve uma vida das mais fascinantes. Ela era mulher trans que tinha uma relação extremamente próxima com a religião (tanto que quando ainda se lia como sendo um homem tentou entrar para o seminário), cursou belas artes e virou uma pintora de obras sacras com renome internacional chegando a pintar igrejas na Europa. Sua relação com a religião era fascinante, dizia que sempre se identificou com figuras como Maria e pelo feminino e disse que isso nunca chegou a ir de encontro com a sua transgeneiridade. Márcia faleceu nos anos 90, ainda hoje varias igrejas da sua cidade natal tem murais e quadros seus. Uma vida digna de personagem da ficção e que infelizmente caiu no esquecimento (jogue o nome no google e você dificilmente verá sequer uma foto dela ou dos seus quadros). O trabalho desse quarteto de jovens diretores é uma das coisas mais nobres e mais maravilhosas possíveis, é um curta-documentário relativamente simples mas que mexeu muito com algo que me interessa muito: pessoas e histórias maravilhosas e ímpares que acabam caindo num limbo a espera que alguém resgata-las de lá.

"- O senhor sabe quem está enterrada aqui?"
"- Sei não, só sei que é gente."





Broto (Antonio Teicher)

Esse aqui e o próximo eu vi numa mostra de curtas de terror e do gênero fantástico que, curiosamente, calhou de ser justamente a minha favorita. Nesse curta fantástico que flerta horrores com o surrealismo nós vemos duas secretarias que lentamente criam uma relação de amizade com o passar dos dias e com um segredo que ambas compartilham: em uma das salas do escritório crescem flores do piso e que elas não sabem se podam ou se deixam florescer. Esse curta é fruto (ba-dum-tiss) de uma vaquinha de internet e trabalho de conclusão de curso de um grupo de alunos da UFF, saber que um curta tão profissional, tão bem filmado, tão delicioso, tão bem escrito e tão redondinho foi algo que realmente me surpreendeu um pouco e me deixou extremamente entusiasmado para a geração de diretores que estar por vir. O senso de humor do filme é uma delicia, a série de absurdos que acontecem nessa recepção são tremendamente divertidos e os diálogos surgem de uma forma muito natural (mesmo eles sendo propositalmente sem sentido as vezes) e as duas atrizes principais estão muito bem e tem muita química. Um filme fantástico queer por excelência, que venham outros!



Para minha gata Mieze (Wesley Gondim)

O que "Broto" tem de solar e leve "Para minha gata Mieze" tem de gore e brutalidade. Nesse curta vemos um jovem veterinário gay que passa a ser perseguido por um grupo de homofóbicos, o resultado é uma escalada de violência das mais diversas formas, desde pichações e insultos pesados até uma carnificina que acontece no final. Me lembrou muito o "Animal Cordial" da Gabriela Amaral Almeida na forma como o terror e a violência exagerada e irracional acabam retratando esse Brasil que vivemos absurdo de hoje. Aqui o protagonista (interpretado maravilhosamente pelo João Campos) não fica reduzido ao papel de vitima, longe de ser flor que se cheire ele reage de forma escabrosa aos seus agressores de um jeito que é quase um grito. Amei a direção segura do diretor, ficarei de olho nas próximas produções dele. E fica a moral da história: nunca mexa com um gay que esta movido pelo ódio...

Menções honrosas:

Tempestade (Fellipe Fernandes)- curta sobre um empacotador de supermercado que tem visões estranhas enquanto burburinhos sobre uma possível greve começam a surgir no seu trabalho. Quase um "Trabalhar cansa" da era Temer-Bolsonaro, muito bom e com imagens bastante marcantes.

Guaxuma (Nara Normande)- nesse hibrido de animação com documentário a diretora reconta a sua infância da forma mais criativa possível. O domínio que a Nara tem da animação é algo absurdo, o resultado de uma delicadeza e de uma melancolia sem tamanho.

Guri (Adriano Monteiro)- curta capixaba sobre um menino negro que é alvo de racismo na escola e que tem como meta ganhar um campeonato de bolinha de gude. Esse curta é apaixonante, tanto pela forma super ágil e eficiente com que o diretor constrói os personagens e os dilemas como pela história em si. Sem duvidas um dos pontos altos do festival.

Praticas do absurdo(Alexander S. Buck)- mais um curta capixaba, dessa vez contando cinco histórias absurdas que acabam nos tirando da zona de conforto após retratar algum aspecto do dia a dia que acabamos banalizando. As minhas favoritas foram a da mulher que só é invisível quando ninguém tá olhando e a do cara negro que quebra tudo numa festa.

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