Livro: "O corpo dela e outras farras" de Carmen Maria Machado



Ser parte de uma minoria e fã de filmes de terror é uma tarefa ingrata. O terror pode ser um gênero tremendamente subversivo, não raramente ataca instituições como a igreja, o governo, a família e a própria segurança que ambientes como a nossa casa ou o nosso quarto como forma de causar desconforto e insegurança. Mas ainda sim não é raro (para não dizer que é a regra) que lidemos com narrativas que na esmagadora maioria das vezes são brancas e heteronormativas. Essa discussão não nasceu ontem, críticas a forma como negros eram representados em filmes sobre vudu haitiano datam desde meados do século passado e reclamações de época de grupos feministas sobre a forma como mulheres eram retratadas em filmes slasher também não é algo difícil de achar. 


Essa discussão vai longe, mas não pretendo me aprofundar nela até porque não me acho apto para isso. Falando de um ponto de vista pessoal eu sempre senti falta de me ver em filmes de terror, este é o meu gênero favorito a muito tempo e consumi vorazmente filmes de terror de todos os lugares e épocas durante a minha adolescência e sempre senti esse vazio. Falta de material certamente não era, Jordan Peele  é um excelente exemplo recente de um artista mainstream que faz sucesso transformando em horror e em fantástico as violências presentes na vida comum de um grupo minoritário (no caso, a das pessoas negras) e pesquisando hoje não foi difícil achar listas de filmes de terror com personagens abertamente LGBT ou com fortes doses de homoerotismo, mas grande parte filmes desconhecidos ou então filmes que normalmente tem a leitura queer ignorada ou considerada algum tipo de piada interna (como é o caso A hora do pesadelo 2 que durante muito tempo teve a sua leitura queer vista como uma forma de debochar do filme e do protagonista).

A minha busca por obras de terror queer (ou queer horror como é mais comumente conhecido e como eu me referirei daqui em diante) que não somente falariam abertamente sobre personagens LGBT, mas também de alguma forma subvertessem padrões heteronormativos, acabou se tornando a minha mais nova obsessão. Embora seja mais fácil entrar em contato com filmes desse subgênero, afinal a esmagadora maioria dos livros ainda não foi lançada aqui, o primeiro alvo da minha obsessão foi a coletânea de contos O corpo dela e outras farras da escritora norte-americana Carmen Maria Machado.

Lançado no Brasil em 2018 pela editora Planeta com tradução de Gabriel Oliva Brum, O corpo dela e outras farras se trata de uma coletânea de oito contos narrados por mulheres que contam histórias estranhas, violentas e surreais envolvendo os seus corpos ou os de outras mulheres. Neste seu livro de estreia Carmen não só conseguiu a atenção da mídia e da crítica especializada como também foi finalista do National Book Award, do Shirley Jackson Award, do Nebula e ganhou o Lambda Award na categoria de ficção lésbica. Em outras palavras: o seu livro foi um sucesso.



Cheguei ao livro completamente por acaso, ano passado vi no twitter um usuário fazendo indicações de livros para se ler no mês da visibilidade lésbica e ele estava lá, quase que como uma nota de rodapé, e descrito como sendo para quem gosta de horror. Acabei comprando mais pela curiosidade de ler histórias de horror protagonizadas por lésbicas do que por qualquer outra razão, ir ler esse livro completamente desarmado foi como ser atropelado por um trem. Já na primeira história, O ponto do marido, a autora já deixa claro que estamos diante de algo novo.

O nome faz referência a uma prática de violência obstétrica, infelizmente ainda muito comum, onde o médico, após o parto, faria um ponto na vagina da mulher para deixa-la mais apertada. A prática aumentaria o prazer do homem na hora do sexo, mas em compensação causaria uma dor horrível na mulher. Apesar de não ser citada diretamente no texto, a ideia do corpo da mulher sendo usado para o prazer e diversão alheios permeia não só essa primeira história como todo o livro. Especificamente nesse conto vemos a história de uma mulher que tem um laço verde em volta do seu pescoço (outras mulheres desse conto aparecem com laços em outras partes do corpo) e que é perdidamente apaixonada pelo seu marido, ela o deixa fazer o que quiser e realizar todas as suas fantasias, a única restrição é que ele não toque no seu laço. Esta passa a ser a obsessão do marido que deseja saber de qualquer forma o que está embaixo dele e o que a esposa esconde, ainda que ela insista que isso é a única coisa que ele não pode fazer.

Além de já dar o tom estranho, surreal e melancólico que o livro seguirá dali em diante, O ponto do marido também já nos apresenta o estilo único de escrita de Carmen, que é tão estranho e surreal quanto as histórias que ela conta. A prosa da autora é extremamente moderna, ela faz ligações com outros livros e mídias como lendas urbanas e séries de televisão (tem um conto inteiro que é uma reimaginação, uma fanfic, do seriado Law & Order SVU ) e também em diversos momentos parece recusar qualquer tipo de tentativa de fazer algo realista e faz algo deliberadamente artificial ou então auto-referencial. A única forma que eu tenho para explicar o que senti lendo os contos dela é dizendo que senti como se estivesse vendo um filme technicolor com cores saradíssimas. Essa recusa de uma estética naturalista só acrescenta a queerness do livro e dá a ele um ar um tanto camp.

Em O ponto do marido por exemplo ela parece brincar com o livro infanto-juvenil Histórias assustadoras para contar no escuro de Alvin Schwartz. Nele o autor conta pequenas histórias de terror e coloca instruções entre parênteses para quem for conta-la, instruções do tipo ( pule em direção da pessoa mais próxima enquanto grita VOCÊ), isso é aproveitado de forma bem única em O corpo dela…, o livro começa da seguinte maneira:

(Se for ler esta história em voz alta, por favor, use as seguintes vozes:
EU: quando criança, aguda, esquecível; quando adulta, da mesma forma.
O GAROTO QUE SE TORNARÁ UM HOMEM E SERÁ MEU MARIDO: repleta de espontaneidade.
MEU PAI: gentil, estrondosa; como a do seu pai, ou a do homem que você gostaria que fosse seu pai.
MEU FILHO: quando pequeno, suave, como se tivesse a língua um pouco presa; quando adulto, parecida com a do meu marido.
TODAS AS OUTRAS MULHERES: intercambiáveis com a minha.)

"The courtship"- Gertrude Abercrombie. As pinturas surreais e melancólicas de Gertrude me lembram muito o universo criado por Carmen Maria Machado

Esse tipo de coisa está tão bem integrada a narrativa e combina tão bem com a proposta peculiar das histórias que em momento nenhum soa forçado ou uma tentativa falha de ser uma escrita moderna. O único momento em que não gostei de um recurso similar sendo usado foi no conto Especialmente hediondas- 272 visões de Law & Order SVU em que ela inventa sinopses para Law & Order, admiro a ideia mas para mim particularmente não funcionou (nem esse e nem o conto Mães). Fora esse, que eu cheguei a pular paginas, todos os outros me fisgaram completamente para o universo particular da autora, um universo em que os corpos femininos são hostilizados, modificados violentamente e usados para o prazer e a diversão (ainda que nem sempre seja o da dona).

Ao longo do livro vemos uma longa lista de experiências sexuais de uma mulher bissexual que, ao falar delas, também acaba indiretamente falando de uma estranha doença que esta se espalhando pelo mundo e exterminando a raça humana. Vemos também a história de uma moça lésbica que trabalha em uma loja de vestidos no momento em que por alguma razão várias mulheres começaram a ficar translúcidas e a literalmente desaparecerem. Testemunhamos o resultado de uma agressiva cirurgia de redução de peso que está na moda que uma senhora faz e só tarde demais percebe que perdeu não só gordura, mas também uma parte de si mesma. E acompanhamos o lento processo de perda de identidade de uma escritora que é chamada para uma residência com outros artistas em um hotel isolado e longe da companhia de sua esposa.

Tudo isso rodeado por um clima onírico, bastante erótico em vários momentos e bastante perturbador em outros. Durante a leitura me lembrei da falecida Barbara Hammer, uma cineasta lésbica e buscava retratar nos seus filmes experimentais temas como o corpo e o toque. Ela já chegou a falar como o cinema a ajudou a entender o toque e como a experiência de tocar a si mesmo e ao outro é algo que se é negado ao sujeito queer e que deve ser aprendido. Senti que a visão de Hammer sobre a descoberta do toque e do corpo dialogam perfeitamente com o mundo de Carmen. 

As mulheres perdem a si mesmas, perdem as companhias e perdem o próprio corpo. O terror sendo usado para falar sobre a relação da mulher com o próprio corpo e desse corpo com a sociedade não é algo necessariamente original (filmes como Em minha pele, A pele que habito e outros filmes do gênero body-horror já trataram sobre isso) mas que aqui foi executado de forma única.

Quando terminei o livro senti que estava com um gosto estranho na boca, não um gosto ruim, mas estranho. Uma semana já se passou e o gosto continua, mas agora sei que não só eu gosto dele como também quero mais.

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